(Dois repórteres de FATOS & FOTOS escalam o pico das Agulhas Negras para mostrar as emoções do alpinismo a 2.900 metros de altitude.)
“Nós tínhamos que escalá-lo porque ele estava lá”. Assim falou o neozelandês Hillary quando lhe perguntaram por que arriscara a vida para escalar o Everest, a 8.848 metros de altitude. Qualquer alpinista responderá com a mesma satisfação intima, mesmo se a escalada for ao pico das Agulhas Negras, no Parque de Itatiaia (na confluência do Estado do Rio, Minas e São Paulo), com 2.900 metros de altura. Valerá a pena arriscar a vida, caminhar sobre blocos de gelo, pular entre pedras escorregadias, se lançar aos ares suspenso apenas por uma finíssima corda de náilon? Quando se é jovem, e corajoso, talvez compense este passeio em vertical para fazer uma leve refeição acima das nuvens. O que mais atinge o novato é ser gozado pelos alpinistas veteranos. “Vocês se esqueceram do para-quedas?” “cuidado com as mordidas de cobra!” “Tragam o aquecedor elétrico!” Ouvíamos as piadas durante as sete horas de viagem, numa velha Kombi, do Rio a Itatiaia, numa sexta-feira à noite (para aproveitar melhor o fim-de-semana), enquanto as moças entoavam melodias dos alpinistas. A Kombi chega às proximidades do Tigre Velho, que é como eles chamam as montanhas a serem escaladas, a uma altitude de 1.400 metros, e o motorista desliga o motor para nos mostrar os primeiros blocos de gelo que veríamos naquele dia. Com a temperatura que, à noite, chega a descer a quatro graus abaixo de zero, o gelo se estende numa camada compacta sobre a vegetação rasteira.
NEM OS INSETOS
Dormindo duas horas nas camas do abrigo que o governo construiu para os alpinistas em Itatiaia e, às 9 da manha, o velho guia Fabri gritou: “Vamos voltar que esta chovendo!” Era uma brincadeira para testar nosso estado de espírito e nervos. O Pessoal já estava vestido com cachecol para proteger ouvidos e nariz do vento forte, boné, macacões e luvas de lã, calças de veludo, blusões, botinas ou alpargatas. Comemos queijo, salaminho, pão de centeio, geleia e leite em pó. Tínhamos ainda chocolate, Karo, biscoitos e manteiga de cacau (para os lábios, que se racham com o frio). Pusemos o que cabia na mochila, enchemos de água o cantil e partimos em grupos de oito e dez. o grupo da frente era integrado por veteranos, que escalariam as Agulhas Negras pelo lado oeste, o mais íngreme. Ficamos atrás, junto aos novatos. Do abrigo ao pico, caminhamos mais de uma hora, através de riachos congelados e vegetação sempre rasteira. Não havia insetos, pássaros, nenhum animal, por causa da rarefação do ar. Próximos à primeira etapa passamos por uma velha cruz, de madeira, quase tombada, onde mal se lia: Aqui jaz... O velho guia Fabri explicou que eram três montanhistas mortos, um por escorregão e os outros dois misteriosamente.
A PRIMEIRA QUEDA
Com mosquetões, ganchos de segurança, brocas compridas e cordas de nylon, auxiliados pelas botinas de ferrões, íamos, de pedra em pedra, invadindo aquela solidão onde nem os animais ousavam habitar. A subida parecia fácil. Era cansativa e, no entanto assustadora. Ate que pesei numa pedra solta e desci de arrastão por uns cinco metros. Um tronco de madeira escorou-me. Esticaram-me a corda e, meio tonto, sem perceber direito o que Vento Sul se passara, amarrei o nylon à cintura e fiz sinal para me içarem. A seguir, descansamos; enquanto bebíamos água e comíamos barras de chocolate, a moça dos medicamentos borrifou meus arranhões com mercúrio e, exceto pelo susto, praticamente esqueci o incidente.
A COMIDA NO VENTO
O guia Fabri, receoso pela minha segurança, veio propor que eu retornasse ao abrigo. “Aonde o fotografo for, eu irei”, insisti, procurando esconder o medo. Estávamos já a dois mil metros de altitude, acima das nuvens. Três molas e dois rapazes resolveram desistir. Nem todos os novatos vendem o medo. A subida reiniciou- se. O grupo 1, que subia pelo lado oeste, já se distanciara muito. Eram 14 horas quando o alcançamos, no topo da montanha, numa plataforma de dois metros e meio por vinte metros, a 2.787 metros de altitude, onde fiz a mais estranha refeição da minha vida. O vento frio e cortante batia de todos os lados e ao longe se descortinavam apenas montes e mais montes, sob nuvens que davam a impressão de geleiras.
SOLIDÃO E LÁGRIMAS
E então descobri que a solidariedade, no alpinismo, é ditada pelo instinto de autoconservação e pela solidão. Sentir-se como um pendulo humano, balançando suspenso por uma corda, é outra sensação que as palavras não descrevem. Mas quando se vende uma altitude destas, a solidão é tão dramática que, se eu estivesse sozinho começaria a chorar, como fez Bonati, o mais celebre alpinista italiano, que ficou quatro dias sozinho no monte Branco, nos Alpes Suíços. O almoço é frugal e então começam as brincadeiras, a quase três mil metros de altura, de batizar os novatos. Passaram a chamar- me de Caboclo Ventania (ainda não sei o porquê) e de Abominável Homem das Neves ao fotografo, por causa da sua mania de guardar blocos de gelo na mochila. E então chegou a hora de descer, para começar tudo de novo.
Fotos de SEBASTIÃO BARBOSA. *FATOS & FOTOS. Brasília, 24 de agosto de 1995
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